“A causa direta da morte de Lilo Clareto foi covid-19. Mas não foi o vírus que matou Lilo. Foi quem disseminou o vírus pelo Brasil (…). Eu te responsabilizo, Jair Messias Bolsonaro, por assassinato.” Eliane Brum no El País
Os crimes contra a humanidade cometidos durante o período pandêmico pelo ocupante ilegal da presidência da república e por seus cúmplices – como o general Pazuello, o presidente da Câmara Arthur Lira, o “engavetador geral da PGR” Aras, dentre outros calhordas – podem ser descritos com estatísticas absolutamente estarrecedoras: são mais de 670.000 óbitos e mais de 36 milhões de casos de covid 19 no Brasil (dados da Universidade Johns Hopkins em 6/8/22). Números que representam, através de uma matemática macabra, o grau de desprezo pelas vidas humanas manifestado por esta ideologia doentia e psicótica que é o bolsonarismo.
Esta hecatombe tem vários impactos sociais, sobretudo sobre a saúde mental dos sobreviventes (nós todos que a aliança entre o coronavírus e seu propagador não assassinou), com a disseminação de distúrbios de depressão, ansiedade, apatia somados à inumeráveis processos de luto que as pessoas estão tendo que encarar quase sempre sem amparo do poder público. Uma das facetas menos comentadas do Brasil impactado tragicamente pela desgovernança perversa de Bolsonaro e seus milicos é a orfandade, como destacado nesta reportagem de Brasil de Fato:
Ao fim de 2021, “de acordo com uma pesquisa da Imperial College London, o Brasil já tinha mais de 282 mil menores de idade órfãos devido à covid-19. O estudo foi publicado na revista britânica The Lancet e desenvolvido a partir de um modelo de estatísticas que analisou a orfandade em 21 países, incluindo o Brasil. O dado é referente à perda de ambos os responsáveis, porque quando ela é apenas unilateral o número cai para pouco mais de 168 mil.
Diante dos dados, evidencia-se mais uma consequência catastrófica e invisível da pandemia: a situação de crianças órfãs no País. “Além de muitas pessoas enlutadas devido às mortes causadas pela covid-19, também temos muitos órfãos na pandemia”, comenta Elaine Gomes dos Reis Alves, do Laboratório de Estudos da Morte do Instituto de Psicologia da USP. “
Os números são assustadores. Mas muitas vezes os números podem ter menos impacto do que a narração de destinos individuais, de vidas-em-teia ceifadas brutalmente pelos delitos contra a saúde coletiva que perpetrou o Genocida junto com seus cúmplices. Daí a importância de dar carnalidade às vítimas, evocar fotografias dos mortos, contar suas histórias de vida, dar visibilidade e voz aos enlutados e órfãos da pandemia. Tudo isso é salutar na tentativa de sensibilização da sociedade brasileira que ainda está muito longe da digna responsabilização e punição dos operadores do morticínio, a começar pelo próprio presifake psicopata, este profissional fazedor de órfãos operando uma gestão que só constrói ruínas e só governa pela enganação.
Em uma carta pública publicada no El País e endereçada a Maria, a filha caçula de Lilo Clareto, Eliane Brum não mede palavras: “Maria, seu pai foi vítima de extermínio.”
“Não, Maria, seu pai não entrará mais pela porta da casa cantando e com as mãos estendidas para pegar você no colo. Enquanto escrevo essa carta para você, Maria, seu pai virou cinzas. Essas cinzas serão um dia jogadas na boca do Riozinho, lá onde esse rio, só pequeno no nome, encontra o Iriri, na Terra do Meio, na Amazônia.
Sei que mesmo que eu espere até você ficar muito mais velha, Maria, você não será capaz de entender por completo. Você já poderá compreender o pensamento de Davi Kopenawa, Sueli Carneiro e Paul Preciado, mas não terá como compreender o pensamento de um homem que, na maior crise sanitária da história do Brasil, trabalhou para disseminar um vírus que pode matar. E mata.
Não importa a idade que você tenha e os diplomas que acumular, Maria. Ainda assim não haverá como compreender um homem que estimulou as aglomerações quando os médicos pediam que a população ficasse em casa. Um homem que vetou a obrigatoriedade de uso de máscaras quando as populações da maioria dos países do mundo usava máscaras para se proteger da contaminação. Um homem que esbanjou dinheiro público com medicamentos comprovadamente sem eficácia contra uma doença fatal e mentiu para a população que eram eficazes. Um homem que chamou o que matou seu pai e quase meio milhão de brasileiras e brasileiros (até agora) de “gripezinha”. Um homem que recusou as vacinas contra essa doença que converteu você em órfã. Não, Maria, você não poderá entender esse homem em nenhuma circunstância.
Você olhará para mim com seus olhos escuros, suas pupilas negras, em busca de esclarecimento. Eu vou olhar para você e prometo fazer o possível para não baixar os olhos. Porque, Maria, eu não tenho resposta. Muitas teorias já foram feitas sobre genocidas como Adolf Hitler, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Eu já li algumas delas. E muitas, tenho certeza, serão feitas sobre Jair Bolsonaro. E também se escreverá muito sobre as brasileiras e brasileiros que o sustentaram no poder. Primeiro com seu voto, depois com sua crença. Assim como tantos filmes e livros foram feitos e escritos sobre os alemães medianos que sustentaram, com sua ação ou omissão, o extermínio de 6 milhões de judeus, homossexuais, ciganos e pessoas com deficiência na Alemanha dos anos 1940. Pessoas que andavam entre nós, que conversavam amenidades na fila do pão e, de repente, olhamos para elas e as descobrimos salivando com a morte. Pediam não mais pão, mas mais armas.
O que é o mal, Maria? Nos debatemos com esse dilema desde sempre. Até viver horrores como esse apenas pelos livros, eu tinha muitas dúvidas sobre nomear o mal. Me parecia simples demais, fácil demais. Mas, hoje, Maria, depois do que tenho testemunhado com meu próprio corpo, preciso dizer que o mal existe. Bolsonaro é o mal, Maria. E Bolsonaro foi engendrado nesse mundo, nessa época histórica, por essa sociedade, por essa conjunção de genes e de acasos, por essas circunstâncias.
Bolsonaro tenta fazer o mal desde que o Brasil sabe de Bolsonaro. Ele era militar do Exército e já planejava colocar bombas nos quartéis. Por interesses de um grupo e de outro, quem deveria barrá-lo não o barrou. E, de impunidade em impunidade, o mal assumiu o poder. E, por isso, seu pai perdeu a vida e você ficou sem pai. Você, Maria, e dezenas de milhares de outras crianças. Quando eu finalmente for capaz de ter essa conversa com você, talvez sejam centenas de milhares de outras filhas e filhos sem pai ou sem mãe. Porque hoje, quando escrevo essa carta para você, Maria, o mal ainda governa o Brasil.”
Ao fim de seu comovente livro Banzeiro Òkòtó (Cia das Letras), no capítulo “Entremundos” (p. 371), Eliane Brum presta suas homenagens ao fotógrafo que foi seu companheiro de mais de 20 anos de reportagem. O relato de Brum sobre seu próprio luto – Lilo, ela diz, “pedaço arrancado de mim”, “foi assassinado por Jair Messias Bolsonaro” – manifesta toda a indignação justa e legítima que ela sente diante do “horror de viver em um país governado por um genocida. E acordar pela manhã e ver que o genocida ainda está lá porque a minoria que come o planeta ainda acha que pode lucrar com ele”:
“Bolsonaro, o antipresidente do Brasil durante a pandemia, executou um plano de disseminação do vírus para atingir o que chamam de ‘imunidade de rebanho’, supostamente para manter as pessoas na rua trabalhando e a economia ativa. (…) Segundo pesquisas epidemiológicas, 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se Bolsonaro tivesse tomado as medidas de prevenção disponíveis, como uso de máscaras, regras de isolamento físico e períodos de lockdown, em vez de combater máscaras, estimular aglomerações e lutar contra governadores que decretaram quarentenas.
Desse total, 95 mil vidas teriam sido poupadas se Bolsonaro tivesse investido na vacinação quando os primeiros imunizantes surgiram e foram oferecidos ao governo e recusados por ele. Enquanto escrevo, sei que dezenas de milhares ainda morrerão, e essa consciência é da ordem do insuportável. Enquanto escrevo, luto junto com muites para que Bolsonaro seja deposto por impeachment e julgado pela Justiça do Brasil e pelo Tribunal Penal Internacional por extermínio, um dos crimes contra a humanidade, no caso da população geral, e por genocídio, no caso dos povos originários.
Na Amazônia, Bolsonaro usou o vírus como arma biológica inesperada que o ajudou a acelerar o processo de predação ao mesmo tempo que minava a resistência. Enquanto as pessoas que lutam pela floresta tentavam se proteger ficando em casa, em isolamento físico, predadores humanes avançavam livremente. Tanto que uma frase se tornou clichê, escrita em várias línguas: ‘Os destruidores da Amazônia não fazem home office.’ (…) Bolsonaro chegou a vetar água potável, leitos emergenciais e campanhas de informação aos indígenas.” (BRUM: pg. 373)
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Publicado em: 06/08/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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